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Morrissey entrevista Joni Mitchell: Melancolia encontra Tristeza Sem Fim



Arranjada e publicada pela revista Rolling Stone, em 1997, a entrevista entre Morrissey e Joni Mitchell tem esse subtítulo que vai e volta: Melancolia encontra Tristeza Sem Fim. Tristeza Sem Fim encontra Melancolia. Não sei bem quem é qual. Mas quis trazer essa pérola para a língua portuguesa. Fui juntando e traduzindo todos os pedaços que encontrei: fontes aqui, aqui e aquiE ainda dá para ouvir boa parte do áudio da conversa no Youtube: parte 1 e parte 2.

"Chegando na casa de Los Angeles onde essa conversa histórica aconteceu, tento dar palpites a Morrissey – nosso poeta pós-punk da miséria – sobre perguntas em potencial para fazer a Joni Mitchell, uma das poucas artistas populares que merecem o que há de arte nesse título. Sugiro uma discussão sobre a reputação que ambos compartilham por explorarem temas sombrios – em outras palavras: quem é mais triste? "Por que uma discussão?", Morrissey pergunta. "Por que não uma briga?"

Não houve brigas, mas, fiel a suas maneiras, Morrissey delicadamente cutucou Mitchell por fumar e comer carne – afinal, é o homem que no passado deu a um álbum dos Smiths o título Meat is Murder ("carne é assassinato"). E, claro, ele ignorou a maioria das minhas sugestões e até fez uma aproximação de Mitchell – que estava promovendo suas antologias Hits e Misses – às nossas custas, colocando o dedo na ferida por antigas críticas. Não podíamos esperar outra coisa." (David Wild, Rolling Stone)

Morrissey: Eu só queria te agradecer e dizer que estou muito contente de estar aqui. Joni, mito nº1: é verdade que a Rolling Stone elegeu The Hissing of Summer Lawns como o Pior Álbum do Ano?
Joni Mitchell: Fiquei com isso de Pior Álbum na cabeça, mas, quando fui ver, era Pior Título de Álbum [risos]. Acho que eles pegaram pesado com o projeto no geral.

A Rolling Stone também publicou uma árvore genealógica com os homens da sua vida. É verdade?
É. Eu nunca vi. Acho que se chamava Velha Dama do Ano – ou alguma coisa jocosa e ofensiva do tipo.

Você se importou?
Ah, sim, infelizmente.

Você era promíscua?
Naquela época acho que todos éramos. Eram tempos hedonistas.

Você é promíscua agora?
Não, não. Sempre fui uma monogâmica em série. Mas quando eu estava viajando – uma mulher que viaja, assim como um homem que viaja –, aconteciam breves encontros.

*

Ainda se referem a você como “compositora mulher”? É um termo tão ridículo.
Implica limitações.

Implica que não é um compositor de verdade. Eles não diriam, por exemplo, que Paul McCartney é um “grande compositor homem”.
Não. Isso sempre aconteceu com as mulheres nas artes. Supostamente demos um avanço neste século, conquistamos o voto, por exemplo. Mas, se você pegar as mulheres impressionistas, muitas delas eram boas e não podiam participar da Academia. Dizia-se que eram incapazes de lidar com "questões importantes" como os homens lidavam. Não que o assunto tratado pelos impressionistas fosse importante em particular, sempre me pareceu bem agradável: paisagens, pessoas no barco, na praia. Mas achavam que a mulher só conseguia lidar com situações domésticas. Mary Cassat pintava mulheres e crianças de um jeito lindo, o que parecia confirmar essa crença, mas ela tinha tanta habilidade quanto os homens. Quando eu comecei, não havia tantas mulheres compondo e cantando. Não havia tantas quanto há agora, com certeza.

Mas usar o termo “compositora mulher” implica que a palavra compositor pertence aos homens. Ainda te chamam de "compositora mulher" neste país?
Sim, costumam me amontoar em grupos de mulheres, “as Mulheres do Rock”. E eu sempre pensei: eles não colocam Dylan junto aos "Homens do Rock". Por que fazem isso comigo e com as mulheres? Um dos melhores elogios que já recebi foi de um pianista negro e cego chamado Henry. Ele me disse: "Joni, você faz música sem gênero, sem raça". E eu não tinha dito a mim mesma "vou fazer música sem gênero, sem raça", mas no fundo eu queria, sim, fazer música que atravessasse barreiras. Nunca gostei de barreiras; tentaram me ensiná-las desde criança. "Não vá lá". Por que não? "Porque eles não são como nós". Tentam nos ensinar essas barreiras. Sempre ignorei e segui em frente sem pensar se era homem ou mulher ou qualquer coisa. Apenas conhecia pessoas que faziam música e eu era uma delas.

Você tem consciência da linguagem sexista?
Não sou uma grande feminista. Fui me tornando com a idade, mas não dava muita atenção a isso. Muitas mulheres tentaram me engajar na causa. Eu sempre preferi a companhia masculina, desde a infância. E, sendo uma criança criativa, era difícil brincar. As brincadeiras eram muito divididas em papéis; se brincássemos de cowboy, eu teria que ser a Dale Evans, ficar em casa e cozinhar. Se eu brincasse com as meninas, era sempre assim: "minha boneca faz xixi e a sua não", "tenho louças mais bonitas que as suas". Então meus melhores parceiros de jogo eram crianças criativas, que acabaram se tornando musicistas clássicos. Meus dois amigos eram gays, e não brincávamos com divisão de papéis. "Vou dançar, vou compor músicas". A gente se gabava muito, mas ninguém dizia que a gente se gabava, sabe? Ficávamos livres para brincar de sonhar os nossos sonhos.

Na Inglaterra, o feminismo é bem impopular no momento.
Lembro quando surgiu o termo. Na verdade, eu costumava sair pra jantar com Warren Beatty e Jack Nicholson nessa época, e eles se divertiam com o fato de eu nunca ter ouvido falar nas feministas. Eu estava sempre por fora. Dava sorte se soubesse dizer o nome do presidente do momento. Eu vivia muito mais no mundo interior.

*

Você não acha que as entrevistas de pop rock têm que ser muito confessionais, senão o público não se interessa?
Eu coloco muita sinceridade nas minhas músicas, e ainda assim ficam sempre me cutucando para desenterrar sentidos ocultos. Mas não tem nenhum. Um cara já me parou por 15 minutos, tentando me fazer confessar que "The Sire of Sorrow (Job's Sad Song)" era autobiográfica. Eu disse: "eu acredito mesmo que Deus a escreveu. Eu plagiei de três traduções diferentes e juntei tudo".

Você não acha que, se sua música é confessional e beira o "intelectual", você precisa estar constantemente se explicando de uma maneira muito mais profunda do que quem faz música descartável, sem sentido?
Sim, eles vêm pedindo explicações, com certeza. Mas, pra começar, eu não me vejo como confessional. Eu me chamaria de "penitente do espírito", não confessora. A questão não é confessar. Se eu transpareço minhas fraquezas ou fragilidades, geralmente é porque, para poder criar algo humano, pleno de experiência humana, você precisa beber da sua própria fonte.
Também usei o processo autoral como uma investigação do eu, uma espécie de autoanálise. Mas não para vomitar minhas entranhas ou me desnudar em público. Algo deveria vir junto disso para que eu pudesse encarar como obra de arte, como algo que tenho orgulho de apresentar. Porque não estou me mostrando, necessariamente, sob uma luz muito lisonjeira.


Como no álbum Blue. As pessoas ficaram meio chocadas com a intimidade e a revelação daquilo. E foi singular na cena pop da época porque, supostamente, você tinha que ser extraordinário e retratar a si mesmo como extraordinário. Quase fiz isso, em partes – lembro de pensar: "bom, se eles vão me endeusar (porque isso já estava começando a acontecer), eles têm que saber a quem estão endeusando". Eu não queria a decepção e também não queria a inadequação de estar no pedestal. Queria criar uma persona que fosse quem eu realmente sou. Porque, se tivesse alguma visão pra passar como figura pública – eu levava esse trabalho com muita responsabilidade –, me sentiria melhor passando algo útil e enriquecedor. Mas, se eu fizer isso com uma certa voz, serei mal interpretada como guru. E eu não sou guru nenhuma. Estou aqui tropeçando como todo mundo.
Então o personagem deve trazer luz ao sair da escuridão. Tem que ser um retrato equilibrado. Eu nunca quis fazer entrar no papel de poeta, então caíam essas pérolas da minha boca. Quando conheci o Prince, cometi algum erro gramatical ao longo da noite e ele me corrigiu dizendo: "logo uma poeta como você"... E eu disse: "meu deus, tenho que encarnar a poeta?".

Eu li uma entrevista com um ator de cinema que, em um momento, disse: "sou do tipo de cara que gosta de mostrar o pau em público". Era um comentário que não tinha nada a ver com o que vinha antes ou depois. Isso só reafirmava como entrevistas hoje só parecem úteis se fizerem alguma grande revelação.
O que a imprensa americana parece querer fazer, levando ao extremo, me lembra tortura oriental. É como o presidente Mao fazia lavagem cerebral: perguntas cada vez mais íntimas.

Lendo suas entrevistas, posso sentir os bocejos reprimidos. Você às vezes sente que é intelectual demais pra toda essa bagunça?
Não me vejo como intelectual.

Bem, mas você é.
Não exatamente. É um bom lugar pra visitar, mas não quero viver ali. Quero passar o menor tempo possível.

*

Joni, mito nº 72 – bem, não exatamente, mas uma pequena nota de rodapé na história da música pop britânica é o fato de os Sex Pistols terem demitido o baixista original, Glen Matlock, supostamente porque ele ouvia sua música.
[risos]

Você sabia disso?
Não.

Foi uma declaração que circulou na imprensa na época, o que é muito engraçado pra mim porque vi os Sex Pistols ao vivo algumas vezes antes de eles lançarem discos e eu os achava ótimos. E foi também nessa época que mais tive influência da sua música. Então achei interessante que entre Sex Pistols e Joni Mitchell houvesse essa fissura –
Não havia – quando conheci Johnny Rotten, na Jamaica, gostei dele de cara. Ele se parecia comigo quando eu estava no colégio. Ligado em moda, ficava ali sentado com seus sapatos de camurça vermelha, bem anos 50, com a jaqueta xadrez no calor da Jamaica, todo pálido e cheio de espinhas, fugindo do sol. Mas, de verdade, eu sou punk. Sempre tive essa irreverência, sempre estive por fora. Não que ser punk seja necessariamente uma coisa boa (risos)...

Pode ser.
...mas eu sou.

*

Me parece haver três nuances ou períodos muito definidos na sua carreira. O som do final dos anos 60, começo dos 70, era muito diferente do trio de álbuns The Hissing of Summer Lawns, Hejira e Don Juan's Reckless Daughter, e então o que veio depois de Mingus também era muito diferente. Parecem ser três pessoas diferentes nesse caminho. É como eu vejo, talvez esteja errado.
Não, eu concordo.

E Mingus é o seu patinho feio?
Não, de forma alguma. Eu tive a oportunidade de tocar com a banda que era a minha banda preferida do Miles Davis, com exceção de Ron Carter, que foi substituído por Jaco Pastorius. É tudo ao vivo. Toquei com a minha banda preferida no mundo todo, certo? Muita gente diz que minha música não é jazz. Mas é – jazz é um dos pilares que fazem a minha música. Mas qualquer jazzista dirá que eu não falo essa língua. Meu senso harmônico é diferente, muita coisa é diferente. Mas alguns elementos não estariam ali se eu não tivesse amado ouvir Miles ou Lambert, Hendricks & Ross. Mas peguei a estrutura folk de Dylan, então saiu uma coisa nova – que não pertence a nenhum território, na verdade. Tem um pouco de música clássica. Tem muitas influências.

*

Você tem um equilíbrio extraordinário, lindo com as palavras. Nunca ficam versos sobrando nem nada esquisito. Tudo é muito bem lapidado, e é disso que mais gosto no seu trabalho. Você é esnobe com as palavras? Tem alguma palavra que você nunca usaria?
Acho que não tenho preconceito com palavras em si, com exceção daquelas que vieram da psicologia e estragaram a língua inglesa – "neurótico", ego". Não gosto dessas palavras. Vejo elas espalhadas por aí e penso: essa maldita palavra matou outras palavras, tirou o coração da vida, de certa forma. "Neurótico", por exemplo. Médicos adoram tachar isso sobre qualquer mulher que eles atendem, certo? Já parou pra pensar que pode ser ansiosa? Entende, tem outras coisas que passam mais compaixão, compreensão. Então não gosto da maioria das palavras psicológicas. Tive problema com "Deus" por um tempo. Na verdade, uma vez cheguei no Bob Dylan em uma festa em Austin e disse: "você está sempre jogando a palavra 'Deus'. O que Deus significa pra você?". E ele disse que "é só uma palavra que as pessoas usam". Eu falei: "é, mas você está usando. O que significa pra você?". Ele não soube responder. Aí entrou naquela fase born again, e três anos depois ele veio me dizer: "Joni, lembra aquela vez que você me perguntou sobre Deus e o diabo? Bom, vou te responder agora". E então ele se lançou numa grande retórica cristã. Eu falei "não, não, eu não perguntei sobre o diabo. É com a palavra 'Deus' que eu tenho problema". Não que eu fosse ateia, mas no Velho Testamento eu não conseguia distinguir Deus do Diabo. Eram ambos vaidosos e violentos. Eu não conseguia pegar a ideia. Essa palavra morreu por um tempo. Palavras morrem e depois voltam.

*

Você mencionou em algum lugar que o Prince tinha sido apresentado a você na época de The Hissing of Summer Lawns.
Bom, eu vi ele na plateia naquela época em Minneapolis. Acredito que era ele. Na primeira fila à esquerda, gritante – ele tem aqueles olhos grandes, egípcios de pássaro.

Sendo sincero, preciso dizer que esse foi o primeiro álbum que me ganhou por completo, e até o dia de hoje nunca me abandonou, o que é muito tempo – 21 anos vivendo com um álbum. 
Foi o primeiro que você ouviu?

Não, não. O primeiro foi Blue, que pra mim é um álbum extraordinário. Penso que, enquanto eu ouvir música nessa vida, vou ouvir Blue. E também os álbuns seguintes, que achei assustadores – em especial Don Juan's Reckless Daughter, que ainda me deixa hipnotizado. Tudo naquele disco me hipnotiza. Quando peguei o encarte e vi a imensidão daquelas palavras, eu tive realmente que fechar o disco e pensei: "vou deixar para um outro dia, isto é um monstro". Você se sente assim com os seus álbuns? Eles são especiais para você? 
Bom, eu fiz cinco álbuns sem ter de fato uma banda. Só depois do sexto, Court and Spark, eu tinha uma banda, o disco fez algum sucesso comercial, recebeu indicações, foi visto como um auge. E, depois disso, seu nome fica chato. Não importa mais o que você faça. Mas eu ainda estava em estado de ascensão, certo? Então pensei que The Hissing of Summer Lawns continuasse assim. Reconheço que era um pouco experimental, não estava bem assentado, mas anunciava coisas que eu queria muito fazer. Queria muito, mas não encontrava os músicos certos, que assumissem os riscos. Aí apareceu o Jaco e concordou com as ideias que eu tinha para a música. Depois Hejira foi um processo de depuração. Compus a maior parte dele sozinha – sabe, eu viajava pelo país com amigos, depois voltava, me dava um tempo. Ia dirigindo pelos Estados Unidos com muita coisa na cabeça. Então é um bom álbum pra dirigir pelos Estados Unidos. Muitos músicos jovens, vindo de Detroit para Los Angeles, levaram esse disco com eles e puderam sentir a matéria daquilo. Porque você está passando por desertos – quando você faz esse caminho a coisa fica mais viva, sabe?

Muitas das suas músicas são cinematográficas, no sentido de começar descrevendo o clima ou o cenário e depois ficar imersa em uma história ou algo tocante.
Bom, música também é como compor trilha sonora. Geralmente eu faço a música primeiro. E aí digamos que a parte A vai manter uma linguagem mais descritiva. Mas quando a gente chega na parte B, olha aí a melodia. A linguagem tem que ser direta, limpa, sem poesia: "you got a lotta nerve to say you are my friend". Bum! Como monólogo de teatro. Agora a música e o fluxo dos acordes e tudo vão permitir uma passagem descritiva de novo – e depois não. A música dita isso, é cheia de ângulos.

Sei que você não gosta de falar da infinidade de "mini Jonis" por aí, mas queria fazer um comentário sobre isso porque sua influência se tornou algo importante. Quando ouve o rádio, você pensa "ah, isso é uma versão de algo que eu fiz"?
As pessoas sempre me dizem que sim, mas eu não ouço muito. Ouço uma coisa ou outra. Até o Prince, que é um híbrido interessante que pegou algumas coisas de mim – ou assim ele diz – que suas influências são eu e o Sly. Se você me mistura com o Sly, nasce algo único. Eu o ouvi tocar "Paisley Park" com uma passagem de gaita que me interessou muito, me soou muito nova. E eu perguntei a ele: "de onde veio isso?", e ele disse: "de você". E eu não percebi. Mas teve um programa de rádio que me foi dado, como se fosse uma honra, que achei humilhante. Era um cara rodeado de moças; não vou citar nomes, mas tinha uma na qual eu podia ver minha influência, de Joan Baez, de Bonnie Raitt e talvez até de outras também. A premissa era que todas essas moças tinham sido inspiradas por mim, e daria até para associar cada uma com um álbum. Tinha uma para o Court and Spark – e aí tocava uma música que para mim não tinha nada a ver com Court and Spark. Era justamente o tipo de coisa da qual eu queria me afastar. Para piorar, no final ele disse: "essas mulheres estão ganhando de Joni em seu próprio negócio, veja como ela não sabe mais o que é melodia". E então ele pôs pra tocar "The Reocurring Dream", que é uma música de coro cheia de montagem e sátira. Pensei "meu deus, isso não é perda de perspectiva, isso é construção". É uma música de coral! São contra-melodias.

*

Você fuma cigarros sem culpa?
Sim, sim. Sou uma fumante, para mal ou para bem.

Mas cigarro mata muita gente, não? 
E daí? [risos]

Para que letristas você tira o chapéu?
Dylan.

Buffy Sainte-Marie?
Algumas coisas. E algumas coisas do Leonard Cohen.

Eu acho que você é a maior letrista que já existiu.
Oh, meu deus.

Acho que você é muito subestimada. 
Sou subestimada em relação a coisas que nem são tão boas. Mas Dylan – ele faz coisas que eu não consigo fazer.

Você se importa se eu jogar alguns nomes pra você? Não precisa comentar todos se não quiser. Chrissie Hynde. 
Fui ver a peça dela em Nova York, e ela disse: "acabei de me apresentar na Califórnia e umas mulheres ficaram gritando comigo. Não entrei nesse negócio para ouvir mulheres gritando comigo". Depois toquei "Fez", em Nova York, e Chrissie foi. Ela parecia ter bebido muito. Durante o show todo ela dizia "arrasa, Joni!". Foi muito engraçado. Ela e Carly Simon estavam trocando farpas. Pelo que entendi, Carly mandou Chrissie calar a boca, e Chrissie voou na garganta de Carly [risos].

E Janis Ian? Você ouviu a música "Stars"?
Uh, acho que não.

E Melanie?
Não me é estranha. Me desculpe, não ando por dentro da música contemporânea.

Acho que ela não é considerada contemporânea.
Algum dia foi.

*

Há uma força em você que é ignorada – falam dessa velha imagem sua como a filha que nunca saiu de casa, a filha que está lá em cima no quarto tocando violão, o que eu acho muito irritante e datado…
É.

…e jornalistas ficavam vomitando isso sem parar, e eu pensava: vocês estão ouvindo de verdade esses discos? Vocês não ouvem a mulher forte...?
É uma saga, né? Porque tem muita autobiografia e mudança no nível psicológico, assim como deve ter um bom conto. A premissa de um bom conto é seu personagem principal passar por uma mudança.

Mas é permitido que você mude na música?
Não, não é permitido mudar no show business. Existem papéis definidos, estereótipos. Então eu era a criatura jovem, vulnerável, feminina. E eu não podia sobreviver assim. E eu desmoronei, de certa maneira. E voltei reforçada. Como se a Marilyn Monroe virasse Barbara Stanwyck. Então não conseguiram se acostumar com essa mulher que surgiu de ombreiras. E a rejeitaram. Era uma persona bem diferente – e tampouco era artificial.

Foi crescimento natural. 
Foi crescimento nativo, sabe? Fui equilibrando meu masculino-feminino. [Música] é um mercado de homens. Em vez de ficar reclamando disso, você tem que cuidar do que é seu. Tem que desenvolver força. Não pode simplesmente sair batendo as asas por aí como Madame Butterfly.

Não, não. Quais são seus poetas preferidos?
Eu não gosto de poesia. Nunca gostei. Sempre suspeitei, sempre vi a pose poética em muitos deles. Gosto de algumas coisas do Yeats. Gosto muito do aspecto sonoro, gosto do jeito como ele escreve. Eu musiquei um poema dele, mas discordei de algumas ideias ali e reescrevi uma parte que achei inacabada. É uma suposição minha…

Gentil de sua parte [risos]. 
…que ele ficou envolvido com o Moderno e deixou seu rascunho meio desleixado, porque era moderno mostrar a roupa de baixo – é uma suposição minha. Então eu reescrevi no mesmo estilo da primeira estrofe, do jeito que eu achava que ele teria terminado.

Filmes te inspiram a fazer música?
Estou tentando lembrar se já compus a partir de um filme. Talvez algum verso aqui e ali. Lembro de Dylan, uma vez, me dizer que não conseguia mais escrever, e eu falei "ah, e que tal isso ou isso?". E ele dizia "ah, a caixa escreveu isso". Perguntei "como assim, a caixa?", e ele respondeu "eu anoto coisas de filmes e coisas que as pessoas falam e jogo elas na caixa". Eu falei "não importa de onde você tirou seus retalhos, ainda assim você coloca todos juntos". "Clouds" foi inspirada em uma passagem de livro, em que um cara está no avião olhando as nuvens lá embaixo – e eu estava lendo esse livro no avião, olhando as nuvens lá embaixo. Com certeza já peguei coisas de filmes, mas não consigo pensar em nada agora.

Kirk Douglas era meu ator preferido até eu ler na autobiografia dele sobre sua paixão por matar animais. Por que você acha que a raça humana trata os animais tão mal?
Olhe para a nossa cultura. Se o mundo ocidental é guiado por alguma coisa, essa coisa é a Bíblia. Nossa história original dá ênfase à mulher comida pela cobra, o que é uma interpretação bem burra.

Você viu o filme Babe?
Adorei.

Eu vi na TV e fiquei fascinado com o fato de que o filme era promovido pelo McDonald's. Por que você acha que as pessoas sentem a necessidade de comer animais?
É abstrato. Você herda culturalmente. Falo por mim, porque ainda como carne e amo os meus gatos.

Você comeria os seus gatos?
Meu Deus, não! Seria canibalismo.

*

Se você canta músicas tristes, músicas fortes e expressivas, você acha que seu público se sente melhor tendo a ideia de que você sai do palco e leva a tristeza junto com você? Em vez de, talvez, descer do palco, pular em uma Harley e sair voando pela estrada. 
Bom, depende da pessoa. Teve uma vez que uma menina me abordou, disse "oi, Joni", e eu estava sentada em um café, fumando na calçada. Sou aberta ao contato com o público nessas situações, principalmente se estiver sozinha. E ela disse "tenho transtorno bipolar, adoro sua música, mas odeio fotos suas. Toda vez que te vejo você está sorrindo, e eu fico tão brava". Então é uma pessoa que pensa "eu estou sofrendo, ela está sofrendo". Se ela tem provas do contrário, ela passa a achar que eu sou falsa. Quando na verdade eu me sinto mais ambidestra, sabe? Eu sofro, eu curto, eu sofro, eu curto.

Então você acha que uma parcela do seu público se sente traída quando te vê feliz?
Acho que há essa possibilidade. É uma pena, mas acho que tem gente assim por aí, sim.

Embora, pra mim, suas músicas nunca tenham soado depressivas.
Não, espero que não.

Até porque o próprio ato de escrever uma música é tão positivo, então como a música poderia ser, de fato, depressiva? É que você abre tanto o coração que isso pode ser interpretado com ser triste – 
E qual o problema em ser triste?

Problema nenhum.
Esse que é o problema, é isso que a gente tem que aprender – algo que os húngaros sabem, os tchecos sabem, quem vive sitiado por muito tempo sabe. Suspeito que os irlandeses saibam. Se não sabem, deveriam saber que o mundo não é um botão que você aperta pra sorrir, e a boa arte e a literatura têm que abraçar todas essas coisas.

Qual a música mais triste que você já ouviu?
A Rapsódia sobre um Tema de Paganini, de Rachmaninoff: doce, dolorosa, triste, linda, saudosa, romântica. Até os meus 13 anos, comédia era a única coisa que tinha importância pra mim. Por que então não virei uma compositora de músicas engraçadas? Acho que foi por causa dessa melodia.

Onde você se encaixa agora?
Bem, eu deveria me encaixar melhor. Tinha uma época em que eu estava excomungada de tudo. Então começou a aparecer gente fazendo estilos híbridos – como o Sting – e, conforme os caminhos se abriam para eles, eu dizia para o meu empresário: "claro que você consegue me botar no jogo".

Os pioneiros caem nessa armadilha: você abre caminho para que outros colham o que você plantou.
Acho que sim. E o mercado mudou muito.

Joni, obrigado pela paciência. Obrigado pelos tantos anos de música e, com certeza, outros mais por vir.
Obrigada. Acho que vai dar uma boa entrevista, com carne fresca.

Bem, prefiro uma analogia diferente.

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